Ainda reverberando as palavras de Mariana, pontos muito específicos de improvisação foram trabalhados lá por nós. Retornei com várias certezas e muitas outras dúvidas, questões, sobre a discrepância entre linguagens lógicas territoriais. Sempre acreditei no universo do palhaço sendo trabalhado, em sua maioria, pela utilização da ação. É ela quem define, por meio do gesto, do movimento e da intenção corporal, aquilo que quer dizer - e isto é característica geral do jogo de improvisação de palhaços no Brasil. Dito isto, percebemos, na Argentina, que este tipo de iniciativa, quanto ao jogo improvisativo, se baseia, preponderantemente, na palavra.
Acreditava, ainda no princípio do curso, que este tipo de jogo era "pobre", por vezes inocente, do prisma técnico, de possibilidades de comunicação pelo corpo. Todavia, ao decorrer dos dias e assimilação dessa nova lógica, percebi que, além de possível, ela também poderia ser riquíssima como exercício, como ferramenta a ser explorada dentro de minha pesquisa sobre a figura clownesca. Assim, a construção do riso poderia ser, e o era, fundamentada na dramaturgia cômica. Aquilo que nós, aqui no Brasil, transmitimos por meio da ação, eles, na Argentina, faziam-o por meio da palavra, do verbo, abrindo uma nova janela para mim, em que a vista apreciada, a partir de agora, conseguia avistar um horizonte da técnica do risível ainda mais amplo.
Dessa forma, a palavra agora tomava contornos quase físicos, era ela quem conduzia e direcionava o andamento da cena, enrendava suas linhas pelo tempo cômico. O rísivel poderia ser, naquele momento, fundado apenas na palavra e não mais pela ação (como na improvisação do palhaço Valério, que consistia em ler, citar aos espectadores, imóvel, parado, como em tópicos, suas inquietações mundanas como: "coisas que me causam medo", "coisas que me causam alegria", "coisas que me causam preguiça", "coisas que me causam fome", "coisas que me causam sede", "coisas que me causam dor", seguindo esta lógica).
Em diversos exercícios propostos, Raquel Sokolowicz intentava engendrar do palhaço este outro estado de improvisação, da palavra como ação. Fatalmente, se fossem feitos por palhaços brasileiros, a maioria dos jogos seria improvisada de modo gestual, fisíco, tendo em vista os treinamentos e oficinas aqui feitos por mim durante esses quase 10 anos de pesquisa do universo clownesco. Essa característica brasileira, contudo, apesar de funcionar muito bem, restringe o jogo dramatúrgico, pois tudo pode ser apresentado pela palavra, mas certas palavras não são tão fáceis de serem fisicalizadas.
O jogo lógico, sob o aspecto linear, de edificação da dramaturgia reta, com começo meio e fim, não tem, todavia, nada tem que ver com esse tipo de técnica. A indicação do trabalho ser feita priorizando a fala não cerceia ou diminui a qualidade do jogo. Este, por conseguinte, torna-se ainda mais rico devido ao seu caráter cômico infinito. A lógica do palhaço não é fundamentada no seu raciocínio lógico, como já proposto por mim aqui, mas ultrapassa essa indicação, abrindo um leque ainda maior de possíveis improvisações.
Vendo os exercícios, pude perceber, por exemplo, a dificuldade que eles têm em comunicar com o corpo aquilo que querem dizer. Obstáculo contrário aqui no Brasil, em que esse tipo de exercício, muitas vezes, nem precisa ser feito, posto que já é explorado desde o início do trabalho e tal técnica, ao que parece, para eles ainda é pouco utilizada. Em contrapartida, aqui no Brasil, quando um palhaço tem que falar ou a indicação do exercício é a fala racional, inteligível, este se torna, em diversos casos, um improviso discreto, dificultoso para muitos palhaços. A construção dramatúrgica por ligação de fatos históricos e ou sociais pode ser um recurso do risível muito amplo de experimentações e que, por lá, é muito bem explorada pelos portenhos.
Contudo, apesar de encontrar nesse tipo de técnica um vasto campo de pesquisa cômica, uma vaga certeza que tinha ao sair daqui foi confirmada: a ação é universal, a palavra não. Mesmo não entendendo bulhufas de uma língua, quando os olhos e o corpo comunicam sem uma palavra, a ação é compreendida aqui, no Japão, na Argélia, no Afeganistão, ou em qualquer outra parte do mundo. Assim, aquilo que nos falta sobra à eles e aquilo que nos transborda quase não existe na jarra deles. Portanto, o que nos resta é jogar este jogo, com as regras deles ou com as nossas, mas que, invariavelmente, torna essa experiência, acredito, inesquecível para ambos.
Leonardo Rocha.
Acho lindo isso do Nado escrever sobre palhaço de foma tão acadêmica. Palhaço com seriedade! Uau! Quando eu crescer quero escrever assim.
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