CRÍTICAS FESTIVALE |
Sáb, 08 de Setembro de 2012 18:53 |
Sobre o jeito que a gente gosta
Crítica - Como a Gente Gosta (Grupo Maria Cutia, Belo Horizonte)
Kil Abreu
Para acompanhar o depoimento de muitos dos que estiveram no Parque da cidade na manhã de sexta, podemos dizer que o espetáculo do grupo mineiro foi um convite estimulante neste início de Festivale. Levada ao espaço aberto a montagem foi um convite ao público, que se encanta ao descobrir um Shakespeare com o qual pode pensar e ter prazer em diálogo aberto, sem muitas firulas de linguagem que funcionariam melhor na literatura que na cena. E, de ganho, foi também um chamado que despertou muito interesse pela programação do Festival, recém colocada em movimento.
Nesta história de amores desencontrados o fundamental no trabalho do Maria Cutia é a vitalidade atenta do elenco, indispensável à cena de rua, amparada em um repertório de recursos de atuação afinados. O jogo entre os atores e entre estes e os papéis é o centro da empatia que o espetáculo gera. Mesmo na versão condensada da peça que o grupo apresentou há a exigência evidente de uma dinâmica rigorosa – poética, mas sem dúvida também aeróbica - que dê conta do entra-e-sai que se desenha nas situações e, nesta adaptação, do monta-desmonta de personagens. O jovem elenco resolve a sua tarefa com o prazer que, instalado na representação, alcança a plateia.
Manter este jogo bem marcado - no espaço e na gestualidade- e, por outro lado, mantê-lo efetivamente vivo, é o que move a direção. Um esforço que gera duplo rendimento: o do ritmo em geral firme que mesmo bem partiturado não sacrifica a fluência da peça; e, sobretudo, o do próprio sentido da história que se conta, em que o tema barroco do “mundo como teatro” (então de uma representação dentro de outra) exige uma sintonia fina que a encenação de fato alcança.
A adaptação de Eduardo Moreira enxuga o entorno do eixo que é central na peça: o desencontro e reencontro dos casais, especialmente de Rosalinda e Orlando. Salvo engano também enxuga um pouco a retórica shakespeareana e se concentra, tentando preservar a coisa poética, mais nos fatos que na reflexão sobre eles e nas suas relações laterais, em que o tema do amor vem acompanhado de lances sobre o poder. Se tomarmos ao pé da letra aquela ideia de Harold Bloom, de que o essencial em Shakespeare é que a retórica existe não apenas como instrumento para falar aos outros, mas para falar a nós mesmos, talvez possamos dizer que haja aqui algum prejuízo.
Por outro lado, se aceitarmos que uma peça não vale por si – mesmo uma peça de Shakespeare – mas pelo que conseguimos fazer dela, sem dúvida há também algumas compensações. Por exemplo, ganha-se em um tipo de objetividade que a cena de rua em geral solicita. E, como se disse, ganha-se, evitando o purismo, um tipo de relação com a plateia que não dispensa o sentimento da época (a nossa), certamente mais tumultuada e com menor chance de atenção que no final do século XVI, quando a peça foi escrita. Ademais, não se trata de um barateamento do texto porque as coordenadas de linguagem continuam lá, ainda que não com a mesma verticalidade.
De um modo ou de outro sem dúvida uma parte da empatia do espetáculo mineiro também se deve ao fato de que o amor romântico que ele representa, o amor de Eros, o amor sensual, da atração pura, que dispensa explicações, cada vez mais parece coisa idealizada. Não é que nos tenhamos tornado calculistas e insensíveis desde o século XVII para cá. É que os motivos pelos quais passamos a admirar o outro e mesmo os que despertam nosso interesse sensual também são alimentados socialmente, e nossa sociedade é outra. Eros anda ordinariamente cada vez mais de mãos dadas com Pragma: a razão prática, a avaliação das implicações futuras. Nesse sentido o Maria Cutia nos diz com o seu bonito trabalho - pelo avesso do que ele é - sobre o jeito que estamos aprendendo a gostar.
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