domingo, 10 de abril de 2011

Relatos de bordo (ou de quando a África permanece em nós)

CABO VERDE

Saímos do Brasil no dia 13 de março. Pegamos um vôo Fortaleza-Praia (Cabo Verde) e já estávamos na África. Um arquipélago de ilhas africanas do qual só conhecemos uma - Santiago. Lá nos apresentamos na capital, Praia, e no interior, Santa Cruz - onde foi a nossa estreia. Numa praça, apresentamos o "Na Roda" para mais de 1.200 crianças. Neste primeiro contato, tivemos medo do português precisar de mais crioulo no meio para o espetáculo acontecer e, a partir desse dia, fomos, em cada apresentação, nos familiarizando mais com as palavras crioulas que aprendíamos. É lindo ver um espetáculo sendo construindo naquele instante com seu público. Talvez, apresentando no Brasil muitas vezes perdemos a dimensão disso. E olha que o "Na Roda" já fizemos mais de 300 vezes desde que estreiamos e é um espetáculo super interativo.

Em Praia, estreiamos o "Concerto em Ré" na África, numa das vistas mais lindas do mundo: na praça Cruz do Papa, com um mar cinematográfico ao fundo do cenário. O espetáculo teve a maior participação do público desde que estreiamos. Muito mais do que qualquer vez que fizemos no Brasil. Nem acreditávamos. O público gargalhava, gritava, aplaudia o tempo todo. Uma loucura! Os astros da Banda Maracutaia, Felim, Marmota, Tadeu e Begônia se sentiram como Rolling Stones. O sucesso foi tão grande, que fizemos sessão extra num colégio no nosso dia livre - e esse foi outro espetáculo delirante!

Para fechar nossa visita a Cabo Verde, fizemos o "Na Roda" num parque, no sábado - dia dos pais lá. Foi o nosso recorde de público da turnê. Mais ou menos 3 mil crianças com seus pais. Ao final deste espetáculo, quando levantamos a bandeira do Brasil junto com a de Cabo Verde, fomos aplaudidos de pé. Um momento de arrepiar.


GUINÉ-BISSAU

De Cabo Verde, partimos para Guiné-Bissau - o país mais pobre pelo qual passamos. Muita poeira, não tem iluminação nas ruas, altos índices de malária. A cidade é marrom. Muitas ONGs, projetos da ONU e missionários por lá. E os negros mais negros que encontramos na África. Nós eramos chamados de "brancos pelelês" por eles. Lá tivemos a oportunidade de trabalhar com artistas do grupo de teatro guineense Língua de Bode. Um intercâmbio artístico de trocas riquíssimas. Na oficina brincante, trabalhamos com outros dois grupos de lá: Os Fidalgos e o grupo Blif. Ao final da oficina, eles se juntaram e cantaram pra gente. Vozes que só a África tem. Todos nós seguramos o choro. Talvez, essa seja uma emoção que palavra nenhuma que eu diga consiga dizer.

No dia que apresentamos o "Na Roda" na praça, reunimos quase mil pessoas. Ao final, convidamos todos os artistas que estiveram conosco na oficina e encerramos o espetáculo com as bandeiras do Brasil e de Bissau, e a nossa peneira de fitas farinhado todo mundo junto. Acho que ninguém seria capaz de entender como nos sentimos neste exato instante. Mais uma vez, palavra não basta.

Em Bissau, outro momento em que vemos uma África que desconhecemos. Apresentamos o "Na Roda" na periferia da capital Bissau, num bairro chamado Quelelé. Para o espetáculo, vieram crianças das tabancas (aldeias). Crianças pequenininhas, muçulmanas, com seus véus. Quando olhamos nos olhos deles durante o espetáculo, desviavam o olhar pra baixo. Quando nos aproximávamos para brincar, mas uma vez o olhar se perdia. Esse foi um público contemplativo ao espetáculo. Que queria ver, olhar de longe. E era tanto calor, tanto sol e tanta poeira. Acho que um público tão diferente assim nunca mais teremos.

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

De Guiné-Bissau quase não fomos embora. Nosso vôo foi cancelado e muito tivemos que brigar para conseguirmos sair. Para solucionar o problema, tivemos que ir para Dakar (capital do Senegal) e de lá para Lisboa e de Portugal para São Tomé e Príncipe. São Tomé é paradisíaco. Praias de águas cristalinas, grandes plantações de cacau, frutas saborosíssimas. Lá todos falam o português no cotidiano. Crianças andando na rua e falando português entre elas. Foi o primeiro país na turnê que vimos isso. E essa foi uma diferença enorme na hora do espetáculo. Quando fizemos o "Na Roda" numa escola primária para mais de 1.000 miúdos (assim eles chama as crianças na África - com um forte português de Portugal). Todos cantavam com a gente já na primeira canção. Era tanta criança, tantas vozes, tanta emoção num só minuto de espetáculo.

Numa canção ("A Fazenda") em que pedimos ajuda para segurarem uma casa que desaba com a gente, era lindo ver aquele montão de mãozinha junto com a gente, levantando o teto da casa. No final, enquanto carregava as malas para o carro, as crianças gritavam "Tchau, branca. Volta amanhã!". No mesmo dia, fomos para um distrito, apresentar o "Na Roda", numa pracinha em frente a outra escola primária ao lado de uma igrejinha (cenário típico de filme). Outra lindeza sem fim de momento. Ao final do espetáculo, depois de cantar 2 BIS, dávamos tchau e as crianças não se moviam. A gente repetia que tinha acabado e elas ficavam paradas, imóveis, como se congelássemos o tempo.

ANGOLA

Em São Tomé nosso vôo mais uma vez foi cancelado e assim adiamos um dia nossa ida para Angola. Parece que isso de cancelar vôos é algo corriqueiro na África, ninguém nem estranha. E no dia seguinte, partimos para Luanda. Lá concentramos todas as atividades em um único dia. Foram 2 espetáculos e uma oficina. Fizemos um "Na Roda" em uma escola pública, para mais de 1.200 alunos. Na passagem de som, enquanto as crianças se arrumavam no pátio, já nos surpreendemos. Passávamos o som com uma canção do grupo Palavra Cantada que fala o nome da fruta e do pé da fruta. Na segunda fruta, aquela multidão de criança já respondeu o pé. Levamos um susto. Mais um momento que o português não faz palavra pra dizer.

À tarde, apresentamos outro espetáculo num parque. Na platéia, muitos meninos cheirando cola. Na hora de brincar de roda, caiam porque não se aguentavam em pé. Que tristeza. Eles que, por todo o espetáculo, ficaram atentos, sentados, cantando, na hora de brincar não conseguiam. Sai pensando muito nisso. Sempre fazemos teatro na rua e com o público cheio de moradores de ruas, de bêbados, de cachorros, mas nunca para crianças que não conseguiam brincar. E eles gostaram do espetáculo (ficaram por todo o tempo, com olhos brilhando). Pensei em como experiências artísticas poderiam mudar isso. Desafiei os artistas angolanos na hora da oficina para uma ação assim. Crianças podem ser pobres, podem passar por problemas... Mas, apesar de tudo e de todos, a brincadeira é transformadora, é o dever e direito da criança. Uma criança que não consegue brincar é a coisa mais triste do mundo.

MOÇAMBIQUE

De Angola pra Moçambique - terra de Mia Couto - que sempre coloriu as imagens que fazia eu da África em português. Em Maputo, fizemos um espetáculo no Parque dos Continuadores, lugar onde abriga uma grande feira de artesanato. Lá tivemos um público de famílias, filhos e pais numa manhã de sábado. A interação do público neste espetáculo foi bem parecida com o que normalmente construímos no Brasil, nos lembrou muito nossas praças em Belo Horizonte. Ao final, muitas fotos, muitos abraços e beijos. Isso pode parecer comum, mas em Cabo Verde, por mais que as crianças curtissem o espetáculo, quando acabava, partiam correndo. Não era delas isso de abraçar estranhos. Em Bissau, todas queriam pegar nas nossas mãos. Em São Tomé, elas ficavam de longe mandando beijos e dizendo para mim "Tchau, branca!". Em Angola, queriam autógrafos. Em Moçambique queriam beijos e abraços.

Lá em Maputo, o "Concerto em Ré" foi feito na TV, ao vivo para o programa Pir-lim-pim-pim - que está no ar há mais de 15 anos. Uma loucura. Teatro e TV são bem diferentes, mas Begônia adorou cantar para as lentes da câmera. No último dia, finalizamos a turnê com a oficina brincante no Centro Cultural Brasil-Moçambique. E com os artistas moçambicanos deixamos um pouco do nosso espetáculo: nossa corda, nossa peneira e nosso agogô, simbolizando o fechamento deste ciclo Brasil-África em português.

Ao final deste último dia, depois de 3 dias andando pelas ruas sempre de olho em busca de um encontro casual com Mia Couto (passeando pelas redondezas da casa dele), recebo um telefonema. Quem era? Ele. Uma voz tão suave e calma. Dizia que naquele dia (nossa última noite em Maputo) não conseguiria nos ver porque estava com seu pai já velhinho, mas que no dia seguinte gostaria muito de nos conhecer. Como fomos embora às 7h da manhã, não foi possível. Cantamos um trecho de DOÇURA (canção do Concerto) para ele ao telefone e quando voltei a falar ele ria. Fechou nossa conversa dizendo que nos veremos por esse mundo tão grande. Sei que quando falamos de escritor, palavras conseguem dizer, mas eu, mais uma vez, vejo elas ficarem pequenininhas pra dizer o tamanho de tudo que sinto.

Relatos de bordo de Mariana Arruda.

2 comentários:

  1. Cara Mariana, que lindo relato de viagem.
    Me emocionei muito lendo sobre os espetáculos e as emoções que o grupo viveu.
    Parabéns, continuem fazendo este lindo trabalho.
    Um grande abraço.
    Maria José

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  2. Bom saber que ficaram maravilhados com o meu país. As ilhas de S.Tomé e Principe, e a sua gente é tipico receber da melhor maneira. Duas ilhas que não têm verde no nome, mas as suas paisagens logo mostram que têm verdes mais do que nunca. Existe uma outra África para os brasileiros conhcerem fora as que são mostradas pelos grandes canais de televisão brasileira.

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